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TRAGÉDIA EM SANTA MARIA
A Grande Mídia e a Resposta dos Envolvidos
A Grande Mídia e a Resposta dos Envolvidos
Não falta caráter a muitos, longe disso, mas talvez um pouco de consciência. Após gritante sensacionalismo com posterior esquecimento, a Rede Globo volta a Santa Maria. E estipulando aos produtos de mercado, sobreviventes da tragédia, o que se deve dizer na reportagem
16 de dezembro de 2013 / Publicado no Observatório da Imprensa
Enquanto o Memorial da América Latina de São Paulo ardeu em chamas por alvarás vencidos poucas semanas atrás, exatamente como ocorreu na boate Kiss em 27 de janeiro deste ano, ambos os casos sem a minimamente contextualizada e construtiva cobertura midiática, o programa Altas Horas de Serginho Groisman da Rede Globo estará, nesta terça-feira (17/12), na cidade gaúcha de Santa Maria para gravar uma matéria com 27 sobreviventes do incêndio mais mortal da história do Brasil, conforme determinação do programa que, imediata e alegremente acatado por ativistas santa-marienses, excluirá familiares de vítimas e seus juristas.
Que tal observarmos, desta vez, como nossa sociedade se comporta perante a mídia nos momentos mais críticos?
Poucos dias após todo o sensacionalismo midiático que envolveu, marcantemente, a tragédia na boate da morte através da qual rodaram o mundo imagens de jornalistas e políticos "abraçando" mães de jovens vítimas em prantos desesperados no velório coletivo (atração à parte na história da mídia e da própria sociedade deste país), e fortes críticas dos próprios familiares e sobreviventes por tal sensacionalismo seguido de ausência midiática no momento mais necessitado, isto é, de luta por memória, verdade e justiça, eis que ela, ela mesma, a dona Rede Globo está de volta a Santa Maria - e sob garantias de ser muito bem recebida, por sinal.
Os envolvimentos de tal receptividade que tem gerado alvoroço na cidade por um lugarzinho ao sol midiático Todo-Poderoso são, ou deveriam ser, mais um momento de reflexão e de lição para quem ainda não resolveu jogar definitivamente a toalha da esperança em um país apático, oportunista, falido sob todos os aspectos.
Nem os mais ingênuos, nem sequer uma criancinha acreditaria que a Rede Globo retorna a Santa Maria agora a fim de conhecer e divulgar consistentemente as dores e as dificuldades dos sobreviventes, para uma séria construção social da realidade. A maior clarividência disso reside na quilo que tem causado reclamações dos próprios envolvidos na tragédia, diretamente a nós: a postura midiática que, quando não é omissa, é mesmo distorcionista, cada um deles usando fortes adjetivos. Os mais "equilibrados" e "ajuizados" preferem nos falar apenas em off sobre isso, isto é, não querem ter seus nomes vinculados a críticas à mídia.
A Rede Globo, assim como a mídia em geral seja qual for a tendência e o tamanho, esqueceu-se total e repentinamente da tragédia de proporções horrendas que causa lágrimas e dificuldades das mais diversas em sobreviventes e familiares hoje. Portanto, e seguindo seus precedentes bem anteriores à tragédia de Santa Maria, desde tempos de golpe e ditadura militar, são as Organizações Globo quem determinam o que, quem, como e quando algo deve ser dito.
Disso, condição melancolicamente permitida por nossa sociedade, todo mundo sabe - e todo mundo se queixa. Não foi por acaso que em Porto Alegre e na própria Santa Maria, hoje de tantas dores sufocadas sob indiferença inclusive local, oficial e societária, parte da população protestou jogando até lixo nas dependências da emissora em questão.
Nas redes sociais, o presidente da Associação de Familiares e Vítimas da Tragédia de Santa Maria, sr. Adherbal Ferreira, tem tido que acalmar os ânimos dos que querem participar da matéria de Altas Horas, mas não poderão por indicação do programa de TV. Que ninguém se engane: os sobreviventes não irão contar suas necessidades à Rede Globo pois esta sim, como sempre faz neste país e todos os envolvidos na tragédia sabem muito bem disso, determina o que, quem, como e quando se diga algo, da mesma maneira que decide o tempo em que tudo e todos se calem.
Não podemos confundir pacifismo com passividade, com omissão, muito menos com contradição entre discurso e prática. Em nossa entrevista em 15/12 com Ione Lemos, superintendente de Assistência Social da Prefeitura de Santa Maria, foi confirmado o que sobreviventes, familiares das vítimas e seu advogado, dr. Luiz Fernando Smaniotto, além de outros moradores da cidade têm-nos dito frequentemente: "A Kiss sempre superlotava".
Sobre isso, o prefeito Cezar Schirmer nos disse em entrevista exclusiva na semana passada: "Nunca chegou nenhuma denúncia à Prefeitura, e eu nunca fui à Kiss. Mas nossos fiscais sempre cumpriram as obrigações: inspecionar a casa anualmente". Se todo mundo sempre soube que, em seus quatro anos de funcionamento, a Kiss superlotava, por que nunca ninguém denunciou? E se o prefeito tem razão ou não em afirmar que os fiscais municipais sempre cumpriram suas obrigações, é assunto para uma série de reportagens a ser publicada em janeiro, a exato um ano da tragédia, mas uma coisa é certa: falta senso de cidadania à nossa sociedade. "É muito fácil culpar aos outros, especialmente em momentos trágicos", lamenta Schirmer, ao que acrescentamos: alia-se constante, oportunisticamente neste país àqueles contra quem nos queixamos ontem, como se nada tivesse acontecido.
A Rede Globo elege quem bem entende, derruba presidentes da República, promove golpes além de manipular estilos, costumes, pensamentos e a própria vida da nossa sociedade em seu sentido mais amplo, e isso tudo pelo simples motivo que nós insistimos em rezar sua cartilha sempre trocando a moral, a indignação pelo prato de lentilhas made in porões do poder.
É isso que invalida nossas reivindicações e nos coloca em tanto descrédito quanto a própria mídia hoje. Ainda que isso venha sob o disfarce, a muleta psicológica de "espaço para a voz". Existem espaços alternativos para a voz dessas dores e dificuldades - mas quando a dona Rede Globo entra em cena, tudo é bastante diferente na prática dos patéticos figurinos da vida.
A mídia em geral lucrou com o sensacionalismo nos dias subsequentes à tragédia, e hoje lucra acobertando o caso. Pois nesta "comemoração" de um ano da tragédia, um papo global com sobreviventes renderá mais patrocinadores decorrentes de muita audiência à TV. Alguém tem alguma dúvida?
Depois, que venha Carnaval, Copa do Mundo, e não se fala mais nisso. Já assassinaram as 242 vidas da boate da morte diversas vezes pós-27 de janeiro, e nesta terça-feira elas serão intoxicadas uma vez mais, em plena Santa Maria, principalmente pela forma como se dá tudo isso. O mais triste, se não bastasse, é que a densa cortina de fumaça letal partirá de quem mais se esperava coerência e brios, neste momento.
Certamente, o argumento-chefe passará por coisas do tipo, "não é nosso papel avaliar e/ou escolher o veículo que dá espaço para falar". Mas é papel de comunicador, jornalista, escritor ou coisa que o valha criticar duramente o veículo que lhe poderia dar espaço para divulgar o trabalho? Para a sociedade, sim, na realidade é mesmo e disso todo mundo gosta - por conta e risco, unicamente, de quem faz isso.
O prefeito Schirmer possui raciocínio idêntico a esse da lavagem das mãos como Pilatos, pelo qual é duramente criticado, até execrado pelos mesmos familiares de vítimas e sobreviventes da tragédia, acusado de omisso: "Não é meu papel julgar, cobrar nem avaliar quem errou, mas da Justiça". E do dr. Jader Marques, advogado de defesa de Elissandro Spohr, um dos sócios da Kiss, demonizado pelos familiares e sobreviventes em entrevista exclusiva a nós na semana retrasada: "Faço meu trabalho como qualquer faz e faria em meu lugar. Atuo no direito à defesa de meu cliente". Pois assim caminha esta nação: de Pilatos em Pilatos, cada um tratando de fazer o politicamente correto sem ultrapassar os limites do estritamente convencional.
Outra questão bastante pertinente em se tratando de sociedade brasileira, e deste caso em particular: gera a mesma atenção esse tão reivindicado espaço para a voz em veículo x e y, de acordo com a grandeza financeira de cada um ainda que a diferença envolva um íntegro e incansável defensor dessa voz, e o outro, dono das mentes, dos corações, dos suspiros e do destino do país, autor dos tão combatidos (verbalmente) "abraços de Satanás" no pior momento da dor?
São perguntas que se colocam agora e se a resposta for negativa, a sociedade deve se repensar urgentemente se a proposta for transformar-se para melhor. A realidade é que se este país fosse minimamente sério, a equipe de Serginho Groisman e de qualquer programa de sua emissora sairiam de Santa Maria, pelo menos, ignoradas mais ainda dados os meios disponíveis para comunicação.
Ou, ao menos, que a forma envolvendo isso tudo fosse diferente: no mínimo, que os envolvidos na tragédia, familiares de vítimas e sobreviventes, determinassem quem participaria da matéria de Altas Horas - cada um deles sabe do vácuo que haverá devido à ausência de familiares e juristas de sua defesa. Mas nem uma coisa nem outra: o caminhão de Groisman não sairá de Santa Maria como a Rede Globo merece por seus desserviços à sociedade nos momentos mais críticos, e tudo ainda será feito de acordo com suas determinações.
Além do mais, a dona Rede Globo é perito imbatível na conquista de mentes e corações, especialmente em momentos críticos - à sociedade e a ela mesma. Após o sumiço da emissora de Santa Maria nos primeiros dias subsequentes à tragédia, com as fortes manifestações de junho/julho contra ela por parte da sociedade, de alcance mundial que a fez publicar editorial desculpando-se de maneira tão desesperada quanto falsa pelo apoio (na verdade, promoção) ao golpe militar de 64, e sabedora que é da repugnância contra ela por parte de familiares de vítimas e sobreviventes da Kiss, nada mais oportuno que enviar agora um apresentador de programa de auditório bonzinho, que vai ao ar "de madrugada" e que não seja nada crítico - longe de ser um programa jornalístico, Altas Horas está bem mais para Chacrinha, versão moderada.
Deixou de fora familiares das vítimas os quais, especialmente os mais ativos como o próprio sr. Adherbal, têm muito mais a dizer especialmente no tocante ao que mais teme o Poder Público envolvendo a tragédia: temas jurídicos. Desta maneira, a maior emissora da América Latina e uma das maiores do mundo deixará todo mundo feliz com a ida de Groisman a Santa Maria, e cooperará sutilmente para o acobertamento da tragédia, de maneira mais pacífica. Todos se esquecerão de que a dita-cuja já se esqueceu, há muito e agora sob aplausos dos envolvidos, das 242 vítimas da Kiss, do Poder Público e do empresariado ganancioso para cujo jogo político-midiático muitos fecham os olhos - entre os tantos que realmente não enxergam, haverá os que não querem enxergá-lo por ser uma via bem mais cômoda? Eis a questão...
A Bíblia que todo mundo lembra nos perfis das redes sociais, nas missas, cultos e tem os versos na ponta da língua, mas possui enorme dificuldade em transferi-la à prática mais simples da vida cotidiana, afirma que "o pecado cega o entendimento do indivíduo". Não precisa ser grande conhecedor de mídia para perceber tudo isso, mas as pessoas andam, também neste caso, deslumbradas com o falso brilho dos donos do poder, e não percebem a óbvia realidade por trás de todo esse jogo político-midiático. Ou talvez falte coragem para que alguém se levante neste país, e diga essas obviedades. Mas se nem a tragédia de Santa Maria for suficiente para isso, é sinal de que esta nação realmente deve fechar para balanço, como diria o filósofo.
No que diz respeito a brios e engajamento, temos muito o que aprender com nossos vizinhos argentinos, nação cuja capital federal sofreu incêndio idêntico em 2004, na forma e na proporção, puniu os culpados e acabou com a carreira política do então prefeito. Mas isso é outro assunto para uma próxima vez, depois que as fotos dos presentes no Altas Horas estiverem devidamente postadas no Facebook